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  • Papa Francisco lança autobiografia ‘Spera’

    O Papa Francisco lança nesta terça-feira, 14, em cerca de cem países, sua autobiografia. Em ‘Spera’ (‘Esperança’, em italiano), escrita em parceria com o jornalista Carlo Musso, Francisco conta suas histórias ainda em vida – algo que a Imprensa mundial está tratando como ineditismo. A obra leva a assinatura da Editora Mondadori, tem 368 páginas e também pode ser encontrada em língua portuguesa.

    Francisco parece não cansar de buscar cada vez mais aproximação com sua gente. É assim desde que, em março de 2013, foi eleito para comandar a Igreja Católica. Vem sendo assim nos últimos 4.300 dias, quando recebeu o anel de Pedro. Não perde o humor nem mesmo quando é questionado sobre a necessidade de um próximo Conclave (“Estou ficando velho”, já respondeu), e talvez essa seja uma das suas mais apreciadas características – a objetividade do espírito, aliada à irona, por vezes, fina.

    Lembro perfeitamente do dia em que Bergoglio foi eleito 266º Papa (veja aqui). A princípio, no meio da confusão da redação de jornal em que eu trabalhava, ouvi um sobrenome italiano sendo anunciado pelo Carmelengo, o então cardeal francês Jean-Louis Tauran (já falecido). Pensei algo como “Deu a lógica, reconduziram um italiano ao Vaticano”, mas não. Era Jorge Mario Bergoglio, um argentino.

    Foi uma alegria para os argentinos, e uma festa semelhante entre os brasileiros – católicos ou nem tanto – festa que ganhava novos contornos à medida em que ele escancarava opiniões sobre assuntos espinhosos e sempre evitados nos corredores do Vaticano.

    Talvez sua alquimia venha da fusão do jovem que, primeiro, diplomou-se técnico químico e, mais tarde, cursou Filosofia – e que mesmo depois de ser ordenado sacerdote e ingressar na ordem jesuíta, jamais deixou de olhar, lutar ou pensar no seu semelhante.

    Os releases que começam a ser publicados trazem mensagem que dá o tom do livro: ““Uma autobiografia não é nossa literatura particular, e sim nossa bagagem. E a memória não é apenas o que lembramos, mas aquilo que nos cerca. Não fala apenas do que foi, mas também do que será.”

    Francisco, assim, passeia pelos séculos 19 (quando os italianos chegavam em massa à América do Sul), 20 (falando das guerras, crises sociais e econômicas, questões ambientais) e 21 (onde também lembra questões como migração, meio ambiente, tecnologia, a luta das mulheres e o momento de fervor sexual).

    Demonstra coragem, aliando intrepidez e elegância. É ousado, comove e chega a (des)assombrar com inúmeras revelações ou pensamentos. Para seus leitores, haverá de valer a pena ler suas memórias.

    Francisco completou 88 anos em 17 de dezembro. Se já apareceu em cadeira de rodas para celebrações, também tem se ausentado por ‘gripe’, segundo as fontes oficiais. Submeteu-se a cirurgias nos últimos anos, teve crise séria de pneumonia em 2023 – mas seu olhar segue lançando as mesmas sementes que ele planta desde que chegou do Fim do Mundo. Sua autobiografia é uma uma semente de esperança.

    Trecho

    Eles contaram que se ouviu um choque tremendo, como um terremoto. Toda a viagem tinha sido acompanhada de vibrações fortes e sinistras (…) mas isso era outra coisa: era mais como uma explosão, como uma bomba. (…) Não era uma bomba: era um trovão surdo, na verdade. (…) Um homem, depois de permanecer agarrado a um pedaço de madeira no oceano por horas, teria testemunhado que viu claramente a hélice e o eixo do motor de bombordo escorregarem. Completamente.

    A hélice havia aberto uma ferida profunda no casco: a água entrava copiosamente (…). Eles disseram que os membros da orquestra receberam ordens de continuar tocando (…).

    O navio continuava a inclinar-se cada vez mais, a escuridão avançava, o mar ficava cada vez mais agitado. Quando ficou claro que as garantias iniciais aos passageiros não eram mais suficientes, o comandante deu a ordem de parar os motores, soou a sirene de alarme e os operadores de rádio enviaram o primeiro SOS.

    O sinal de socorro foi captado por várias embarcações (…). Eles correram para o local imediatamente, mas foram todos forçados a parar a uma certa distância porque uma grande coluna de fumaça branca levantou temores de uma explosão desastrosa nas caldeiras. Da ponte (…) o comandante tentava cada vez mais desesperadamente pedir calma e coordenava as operações de resgate, dando prioridade às mulheres e crianças. Mas quando a noite caiu (…) a situação piorou completamente. Os botes salva-vidas foram baixados, mas o navio estava terrivelmente inclinado: muitos afundaram imediatamente após bater no casco, outros ficaram em ruínas e inutilizáveis, entrando água que os passageiros foram obrigados a remover usando seus chapéus. Outros, tomados de assalto, viraram ou afundaram devido à sobrecarga. Muitos artesãos e agricultores dos vales e planícies nunca tinham visto o mar antes e não sabiam nadar.

    Orações e gritos se misturavam.

    Foi o pânico. Muitos passageiros caíram ou se jogaram no mar, afogando-se. Alguns foram tomados pelo desespero. Outros ainda foram devorados vivos por tubarões.

    Naquele pandemônio houve inúmeras lutas, mas também gestos de coragem e abnegação. (…) Bem antes da meia-noite o navio estava completamente inundado, subiu verticalmente pela proa e com um último estrondoso gemido (…) afundou, a uma profundidade de mais de 1400 metros. (…) O comandante permaneceu a bordo até o final, tendo os músicos restantes tocado a Marcha Real. Seu corpo nunca foi encontrado. Certamente, pouco antes do navio afundar, muitos tiros foram ouvidos, disparados pelos oficiais que, depois de terem feito todo o possível pelos passageiros, decidiram que eles não enfrentariam o tormento do afogamento. (…) A recuperação dos poucos sobreviventes que tentavam se manter à tona (…) continuou até tarde da noite. Quando, antes do amanhecer, (…) outros vapores brasileiros chegaram, não encontraram mais sobreviventes.

    Aquele navio, com quase 150 metros de comprimento, foi o orgulho da marinha mercante no início do século, o mais prestigioso transatlântico da frota italiana, transportou personalidades como Arturo Toscanini, Luigi Pirandello (…). Mas aqueles tempos passaram em um momento. No meio, houve uma guerra mundial, e o desgaste, a negligência e a escassa manutenção fizeram o resto. (…) Quando partiu para sua viagem final, para perplexidade de seu próprio comandante, tinha mais de 1.200 passageiros a bordo, a maioria migrantes do Piemonte, Ligúria e Vêneto. Mas também das Marcas, da Basilicata, da Calábria. Segundo dados fornecidos pelas autoridades italianas na época, pouco mais de 300 pessoas morreram no desastre, a maioria delas tripulantes; mas jornais sul-americanos relataram um número muito maior, mais que o dobro, incluindo também imigrantes ilegais, várias dezenas de emigrantes sírios e trabalhadores agrícolas que foram do interior da Itália para a América do Sul durante o inverno.

    Minimizado ou encoberto pelos órgãos do regime, esse naufrágio foi o “Titanic” italiano.

    Não sei dizer quantas vezes ouvi a história daquele navio que levava o nome da filha do Rei Vittorio Emanuele III (…). O Princesa Mafalda. Contaram essa história na família. Contaram isso na vizinhança. Era cantada nas canções populares dos migrantes, de um lado do oceano ao outro (…). Meus avós e seu único filho, Mario, o jovem que se tornaria meu pai, haviam comprado a passagem para aquela longa travessia, para aquele navio que zarpou do porto de Gênova em 11 de outubro de 1927, com destino a Buenos Aires. Mas não embarcaram. (…) Eles não conseguiram vender o que possuíam a tempo. No final, apesar de tudo, os Bergoglios foram obrigados a trocar a passagem e adiar a partida para a Argentina. É por isso que estou aqui agora. Vocês não imaginam quantas vezes me peguei agradecendo à Divina Providência.

  • Eu, Hanaí e o Papa do Fim do Mundo

    Eu, Hanaí e o Papa do Fim do Mundo

    Quarta-feira, 13 de março de 2013. Estou na redação do Jornal da Jundiaí, no antigo prédio da rua Baronesa do Japi, 53, e algum colega de redação nos alerta para o som que vem de um dos três aparelhos de televisão. É a vinheta característica do plantão de notícias da Globo, avisando que algo grave está acontecendo em alguma parte do planeta.

    Fico imediatamente em pé, me aproximo da TV e me vejo ao lado de nossa chefe de Reportagem, Hanaí Costa, que ainda estava por ali, apesar de, pelo horário – o relógio na parede diz que são 3 da tarde – ela já deveria ter ido embora.

    O plantão global passa a transmitir uma imagem que o mundo esperava – a fumaça branca saindo da chaminé da Capela Sistina – e a voz de Sandra Annenberg passa a narrar que saberemos, em mais alguns minutos, o nome do novo Papa.

    Hanaí fica ainda mais impaciente ao meu lado. Jornalista versátil, ela é católica devota, de acompanhar o noticiário do Vaticano no dia a dia. Mas vejo que ela própria está confusa no momento em que o Camerlengo (o então cardeal francês Jean-Louis Tauran) anuncia que “Habemos Papam”.

    Os colegas de Redação começam a fazer barulho, e esse burburinho também atrapalha. Continuo ao lado de Hanaí, não entendo o nome que o Camerlengo anuncia como o vencedor da votação, mas fico pensando que é um cardeal italiano, porque o sobrenome é absolutamente italiano.

    Hanaí demora alguns segundos, no meio da confusão geral, para entender quem é o novo Papa: vira-se pra mim e diz que é Jorge Mario Bergoglio, um argentino – e não um italiano, como eu seguia imaginando.

    Essa cena foi há doze anos. O mundo talvez não tenha melhorado neste período em que Bergoglio, o Papa Francisco, passou a usar o anel de Pedro.

    Eu, pessoalmente (que não sou católico), sou um fã de Francisco. Admiro, torço e reconheço o trabalho de Bergoglio em tantas questões complicadas, para dizer o mínimo.

    O “Papa do Fim do Mundo” – como o próprio Bergoglio se declarou logo nos primeiros dias de Papado – não se cansa de discutir e de se afirmar contrário à desigualdade social global e ao consumismo hiperconectado.

    Autor da primeira encíclica ambientalista, Francisco tenta escancarar a Igreja para enfrentar os seus tabus históricos – tabus que há muito extrapolaram questões religiosas e estão no cotidiano do mundo. Que o Papa possa seguir em seu trabalho e na luta contra as polêmicas como homossexualismo, divórcio, aborto, igualdade de gênero e por aí.

    E que o mundo possa, a cada dia, caminhar cada vez mais calçando sandálias franciscanas.